quarta-feira, 26 de março de 2008

O olho de Hórus



MITOLOGIA EGÍPCIA: HÓRUS
HÓRUS
Hórus, mítico soberano do Egipto, desdobra as suas divinas asas de falcão sob a cabeça dos faraós, não somente meros protegidos, mas, na realidade, a própria incarnação do deus do céu. Pois não era ele o deus protector da monarquia faraónica, do Egipto unido sob um só faraó, regente do Alto e do Baixo Egipto? Com efeito, desde o florescer da época história, que o faraó proclamava que neste deus refulgia o seu ka (poder vital), na ânsia de legitimar a sua soberania, não sendo pois inusitado que, a cerca de 3000 a. C., o primeiro dos cinco nomes da titularia real fosse exactamente “o nome de Hórus”. No panteão egípcio, diversas são as deidades que se manifestam sob a forma de um falcão. Hórus, detentor de uma personalidade complexa e intrincada, surge como a mais célebre de todas elas. Mas quem era este deus, em cujas asas se reinventava o poder criador dos faraós? Antes de mais, Hórus representa um deus celeste, regente dos céus e dos astros neles semeados, cuja identidade é produto de uma longa evolução, no decorrer da qual Hórus assimila as personalidades de múltiplas divindades. Originalmente, Hórus era um deus local de Sam- Behet (Tell el- Balahun) no Delta, Baixo Egipto. O seu nome, Hor, pode traduzir-se como “O Elevado”, “O Afastado”, ou “O Longínquo”. Todavia, o decorrer dos anos facultou a extensão do seu culto, pelo que num ápice o deus tornou-se patrono de diversas províncias do Alto e do Baixo Egipto, acabando mesmo por usurpar a identidade e o poder das deidades locais, como, por exemplo, Sopedu (em zonas orientais do Delta) e Khentekthai (no Delta Central). Finalmente, integra a cosmogonia de Heliópolis enquanto filho de Ísis e Osíris, englobando díspares divindades cuja ligação remonta a este parentesco. O Hórus do mito osírico surge como um homem com cabeça de falcão que, à semelhança de seu pai, ostenta a coroa do Alto e do Baixo Egipto. É igualmente como membro desta tríade que Hórus saboreia o expoente máximo da sua popularidade, sendo venerado em todos os locais onde se prestava culto aos seus pais. A Lenda de Osíris revela-nos que, após a celestial concepção de Hórus, benção da magia que facultou a Ísis o apanágio de fundir-se a seu marido defunto em núpcias divinas, a deusa, receando represálias por parte de Seth, evoca a protecção de Ré- Atum, na esperança de salvaguardar a vida que florescia dentro de si. Receptivo às preces de Ísis, o deus solar velou por ela até ao tão esperado nascimento. Quando este sucedeu, a voz de Hórus inebriou então os céus: “ Eu sou Hórus, o grande falcão. O meu lugar está longe do de Seth, inimigo de meu pai Osíris. Atingi os caminhos da eternidade e da luz. Levanto voo graças ao meu impulso. Nenhum deus pode realizar aquilo que eu realizei. Em breve partirei em guerra contra o inimigo de meu pai Osíris, calcá-lo-ei sob as minhas sandálias com o nome de Furioso... Porque eu sou Hórus, cujo lugar está longe dos deuses e dos homens. Sou Hórus, o filho de Ísis.” Temendo que Seth abraçasse a resolução de atentar contra a vida de seu filho recém- nascido, Ísis refugiou-se então na ilha flutuante de Khemis, nos pântanos perto de Buto, circunstância que concedeu a Hórus o epíteto de Hor- heri- uadj, ou seja, “Hórus que está sobre a sua planta de papiro”. Embora a natureza inóspita desta região lhe oferecesse a tão desejada segurança, visto que Seth jamais se aventuraria por uma região tão desértica, a mesma comprometia, concomitantemente, a sua subsistência, dada a flagrante escassez de alimentos característica daquele local. Para assegurar a sua sobrevivência e a de seu filho, Ísis vê-se obrigada a mendigar, pelo que, todas as madrugadas, oculta Hórus entre os papiros e erra pelos campos, disfarçada de mendiga, na ânsia de obter o tão necessário alimento. Uma noite, ao regressar para junto de Hórus, depara-se com um quadro verdadeiramente aterrador: o seu filho jazia, inanimado, no local onde ela o abandonara. Desesperada, Ísis procura restituir-lhe o sopro da vida, porém a criança encontrava-se demasiadamente débil para alimentar-se com o leite materno. Sem hesitar, a deusa suplica o auxílio dos aldeões, que todavia se relevam impotentes para a socorrer.
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Quando o sofrimento já quase a fazia transpor o limiar da loucura, Ísis vislumbrou diante de si uma mulher popular pelos seus dons de magia, que prontamente examinou o seu filho, proclamando Seth alheio ao mal que o atormentava. Na realidade, Hórus ( ou Harpócrates, Horpakhered- “Hórus menino/ criança”) havia sido simplesmente vítima da picada de um escorpião ou de uma serpente. Angustiada, Ísis verificou então a veracidade das suas palavras, decidindo-se, de imediato, e evocar as deusas Néftis e Selkis (a deusa- escorpião), que prontamente ocorreram ao local da tragédia, aconselhando-a a rogar a Ré que suspendesse o seu percurso usual até que Hórus convalescesse integralmente. Compadecido com as suplicas de uma mãe, o deus solar ordenou assim a Toth que salvasse a criança. Quando finalmente se viu diante de Hórus e Ísis, Toth declarou então: “ Nada temas, Ísis! Venho até ti, armado do sopro vital que curará a criança. Coragem, Hórus! Aquele que habita o disco solar protege-te e a protecção de que gozas é eterna. Veneno, ordeno-te que saias! Ré, o deus supremo, far-te-á desaparecer. A sua barca deteve-se e só prosseguirá o seu curso quando o doente estiver curado. Os poços secarão, as colheitas morrerão, os homens ficarão privados de pão enquanto Hórus não tiver recuperado as suas forças para ventura da sua mãe Ísis. Coragem, Hórus. O veneno está morto, ei- lo vencido.”Após haver banido, com a sua magia divina, o letal veneno que estava prestes a oferecer Hórus à morte, o excelso feiticeiro solicitou então aos habitantes de Khemis que velassem pela criança, sempre que a sua mãe tivesse necessidade de se ausentar. Muitos outros sortilégios se abateram sobre Hórus no decorrer da sua infância (males intestinais, febres inexplicáveis, mutilações), apenas para serem vencidos logo de seguida pelo poder da magia detida pelas sublimes deidades do panteão egípcio. No limiar da maturidade, Hórus, protegido até então por sua mãe, Ísis, tomou a resolução de vingar o assassinato de seu pai, reivindicando o seu legítimo direito ao trono do Egipto, usurpado por Seth. Ao convocar o tribunal dos deuses, presidido por , Hórus afirmou o seu desejo de que seu tio deixasse, definitivamente, a regência do país, encontrando, ao ultimar os seus argumentos, o apoio de Toth, deus da sabedoria, e de Shu, deus do ar. Todavia, Ra contestou-os, veementemente, alegando que a força devastadora de Seth, talvez lhe concedesse melhores aptidões para reinar, uma vez que somente ele fora capaz de dominar o caos, sob a forma da serpente Apópis, que invadia, durante a noite, a barca do deus- sol, com o fito de extinguir, para toda a eternidade, a luz do dia. Ultimada uma querela verbal, que cada vez mais os apartava de um consenso, iniciou-se então uma prolixa e feroz disputa pelo poder, que opôs em confrontos selváticos, Hórus a seu tio. Após um infrutífero rol de encontros quase soçobrados na barbárie, Seth sugeriu que ele próprio e o seu adversário tomassem a forma de hipopótamos, com o fito de verificar qual dos dois resistiria mais tempo, mantendo-se submergidos dentro de água. Escoado algum tempo, Ísis foi incapaz de refrear a sua apreensão e criou um arpão, que lançou no local, onde ambos haviam desaparecido. Porém, ao golpear Seth, este apelou aos laços de fraternidade que os uniam, coagindo Ísis a sará-lo, logo em seguida. A sua intervenção enfureceu Hórus, que emergiu das águas, a fim de decapitar a sua mãe e, acto contíguo, levá-la consigo para as montanhas do deserto. Ao tomar conhecimento de tão hediondo acto, , irado, vociferou que Hórus deveria ser encontrado e punido severamente. Prontamente, Seth voluntariou-se para capturá-lo. As suas buscas foram rapidamente coroadas de êxito, uma vez que este nem ápice se deparou com Hórus, que jazia, adormecido, junto a um oásis. Dominado pelo seu temperamento cruel, Seth arrancou ambos os olhos de Hórus, para enterrá-los algures, desconhecendo que estes floresceriam em botões de lótus. Após tão ignóbil crime, Seth reuniu-se a , declarando não ter sido bem sucedido na sua procura, pelo que Hórus foi então considerado morto. Porém, a deusa Hátor encontrou o jovem deus, sarando-lhe, miraculosamente, os olhos, ao friccioná-los com o leite de uma gazela. Outra versão, pinta-nos um novo quatro, em que Seth furta apenas o olho esquerdo de Hórus, representante da lua. Contudo, nessa narrativa o deus-falcão, possuidor, em seus olhos, do Sol e da lua, é igualmente curado.
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Em ambas as histórias, o Olho de Hórus, sempre representado no singular, torna-se mais poderoso, no limiar da perfeição, devido ao processo curativo, ao qual foi sujeito. Por esta razão, o Olho de Hórus ou Olho de Wadjet surge na mitologia egípcia como um símbolo da vitória do bem contra o mal, que tomou a forma de um amuleto protector. A crença egípcia refere igualmente que, em memória desta disputa feroz, a lua surge, constantemente, fragmentada, tal como se encontrava, antes que Hórus fosse sarado. Determinadas versões desta lenda debruçam-se sobre outro episódio de tão desnorteante conflito, em que Seth conjura novamente contra a integridade física de Hórus, através de um aparentemente inocente convite para o visitar em sua morada. A narrativa revela que, culminado o jantar, Seth procura desonrar Hórus, que, embora precavido, é incapaz de impedir que um gota de esperma do seu rival tombe em suas mãos. Desesperado, o deus vai então ao encontro de sua mãe, a fim de suplicar-lhe que o socorra. Partilhando do horror que inundava Hórus, Ísis decepou as mãos do filho, para arremessá-las de seguida à água, onde graças à magia suprema da deus, elas desaparecem no lodo. Todavia, esta situação torna-se insustentável para Hórus, que toma então a resolução de recorrer ao auxílio do Senhor Universal, cuja extrema bonomia o leva a compreender o sofrimento do deus- falcão e, por conseguinte, a ordenar ao deus- crocodilo Sobek, que resgatasse as mãos perdidas. Embora tal diligência haja sido coroada de êxito, Hórus depara-se com mais um imprevisto: as suas mãos tinham sido abençoadas por uma curiosa autonomia, incarnando dois dos filhos do deus- falcão. Novamente evocado, Sobek é incumbido da taregfa de capturar as mãos que teimavam em desaparecer e levá-las até junto do Senhor Universal, que, para evitar o caos de mais uma querela, toma a resolução de duplicá-las. O primeiro par é oferecido à cidade de Nekhen, sob a forma de uma relíquia, enquanto que o segundo é restituído a Hórus. Este prolixo e verdadeiramente selvático conflito foi enfim solucionado quando Toth persuadiu a dirigir uma encomiástica missiva a Osíris, entregando-lhe um incontestável e completo título de realeza, que o obrigou a deixar o seu reino e confrontar o seu assassino. Assim, os dois deuses soberanos evocaram os seus poderes rivais e lançaram-se numa disputa ardente pelo trono do Egipto. Após um recontro infrutífero, Ra propôs então que ambos revelassem aquilo que tinham para oferecer à terra, de forma a que os deuses pudessem avaliar as suas aptidões para governar. Sem hesitar, Osíris alimentou os deuses com trigo e cevada, enquanto que Seth limitou-se a executar uma demonstração de força. Quando conquistou o apoio de Ra, Osíris persuadiu então os restantes deuses dos poderes inerentes à sua posição, ao recordar que todos percorriam o horizonte ocidental, alcançando o seu reino, no culminar dos seus caminhos. Deste modo, os deuses admitiram que, com efeito, deveria ser Hórus a ocupar o trono do Egipto, como herdeiro do seu pai. Por conseguinte, e volvidos cerca de oito anos de altercações e recontros ferozes, foi concedida finalmente ao deus- falcão a tão cobiçada herança, o que lhe valeu o título de Hor-paneb-taui ou Horsamtaui/Horsomtus, ou seja, “Hórus, senhor das Duas Terras”.
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Como compensação, concedeu a Seth um lugar no céu, onde este poderia desfrutar da sua posição de deus das tempestades e trovões, que o permitia atormentar os demais. Este mito parece sintetizar e representar os antagonismos políticos vividos na era pré- dinástica, surgindo Hórus como deidade tutelar do Baixo Egipto e Seth, seu oponente, como protector do Alto Egipto, numa clara disputa pela supremacia política no território egípcio. Este recontro possui igualmente uma cerca analogia com o paradoxo suscitado pelo combate das trevas com a luz, do dia com a noite, em suma, de todas as entidades antagónicas que encarnam a típica luta do bem contra o mal. A mitologia referente a este deus difere consoante as regiões e períodos de tempo. Porém, regra geral, Hórus surge como esposo de Háthor, deusa do amor, que lhe ofereceu dois filhos: Ihi, deus da música e Horsamtui, “Unificador das Duas Terras”. Todavia, e tal como referido anteriormente, Hórus foi imortalizado através de díspares representações, surgindo por vezes sob uma forma solar, enquanto filho de Atum- Ré ou Geb e Nut ou apresentado pela lenda osírica, como fruto dos amores entre Osíris e Ísis, abraçando assim diversas correntes mitológicas, que se fundem, renovam e completam em sua identidade. É dos muitos vectores em que o culto solar e o culto osírico, os mais relevantes do Antigo Egipto, se complementam num oásis de Sol, pátria de lendas de luz, em cujas águas d’ ouro voga toda a magia de uma das mais enigmáticas civilizações da Antiguidade. Detalhes e vocabulário egípcio: culto de Hórus centralizava-se na cidade de Edfu, onde particularmente no período ptolomaico saboreou uma estrondosa popularidade; culto do deus falcão dispersou-se em inúmeros sub- cultos, o que criou lendas controversas e inúmeras versões do popular deus, como a denominada - Harakhty; as estelas (pedras com imagens) de Hórus consideravam-se curativas de mordeduras de serpentes e picadas de escorpião, comuns nestas regiões, dado representarem o deus na sua infância vencendo os crocodilos e os escorpiões e estrangulando as serpentes. Sorver a água que qualquer devotado lhe houvesse deixado sobre a cabeça, significava a obtenção da protecção que Ísis proporcionava ao filho. Nestas estelas surgia, frequentemente, o deus Bes, que deita a língua de fora aos maus espíritos. Os feitiços cobrem os lados externos das estelas. Encontramos nelas uma poderosa protecção, como salienta a famigerada Estela de Mettenich: “Sobe veneno, vem e cai por terra. Hórus fala-te, aniquila-te, esmaga-te; tu não te levantas, tu cais, tu és fraco, tu não és forte; tu és cego, tu não vês; a tua cabeça cai para baixo e não se levanta mais, pois eu sou Hórus, o grande Mágico.”. out- embalsamadores vabet- lugar de purificação Verónica Freitasveronicafreitas@clix.pt


PRANCHA 'PORQUE SOU MAÇON':
O que aqui me traz hoje, para além de uma integral devoção à Maçonaria Universal, a que me orgulho de pertencer, é a resposta ao convite do meu querido e ilustre Irmão Amando H.'., no sentido de tecer, para o mundo profano, algumas das reflexões pertinentes, na minha qualidade de Maçom. Num momento histórico em que os valores do Universalismo se começam a esboçar, melhor ou pior, em particular através da destruição das barreiras da informação, da globalização do conhecimento e das atitudes, e, para nós, do emergente espaço comunitário europeu, é urgente explicar aos outros “porque sou Maçom”. Este é, como penso ser do conhecimento comum, o título de um brilhante livro do meu Irmão Amando H.'., que eu não pude resistir a retomar nesta comunicação, pela sua pertinência, independentemente do seu conteúdo original.Numa época em que a temática do Universalismo deixou de ser apanágio quase exclusivo da comunidade maçónica, em que os valores profundos da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, ou da Fé, Esperança e Caridade se desmaterializam e desconstroem, em que a virtualidade dos valores reais se confunde com a realidade dos valores virtuais, em que tudo o que é imaginável se demonstrou realizável, mas em que persistem todos os erros e vícios e desigualdades e preconceitos e intolerâncias que sempre definiram e marcaram a história da humanidade e das suas sociedades, não é redundante um Maçom questionar-se e procurar definir o seu próprio contexto espacial e conceptual. De construtor de catedrais a construtor de sonhos e fantasias vai um passo de gigante, vai um imaginário de formiga. O convívio entre a sumptuosidade mítica das catedrais e a miséria, a fome e a intolerância, acompanha ainda a contemporaneidade. A injustiça, os preconceitos e os erros são tão actuais como a internet e as sondas no espaço. Por cada lauto banquete numa qualquer cidade da europa comunitária, há milhões de africanos que anseiam que lhes caia do céu um saco de cereais despejado por um avião da cruz vermelha, ou de outra qualquer organização de solidariedade. A cada humano solidário continuam a corresponder milhões de umbigos solitários. A realidade que se nos oferece neste fim de século não é, assim, muito diferente das realidades que se nos ofereciam em tantos outros fins de século. O fim de século não significa o fim nem o início de seja o que for. É apenas um instrumento de medida como tantos outros, se quisermos, um instrumento de medida da nossa inoperância, da nossa incapacidade.Na minha qualidade de docente universitário, que venho exercendo, paralelamente com outras, há mais de duas décadas, tenho assistido ao nascimento e ao enterro de muitos heróis. Todos eles contribuíram para a diferença, nenhum deles pôs termo ao sofrimento, à intemperança, à injustiça. A Humanidade Sofredora de hoje mantém-se idêntica à Humanidade Sofredora de todos os tempos. À cura para uma doença fatal sucede sempre uma doença fatal sem cura. A cada passo dado no sentido do conhecimento corresponde uma avalanche exponencial de dúvidas. Se calhar é mesmo para ser assim, o que não é impeditivo do nosso inconformismo.... É nesta esteira de preocupações que parto em demanda dessa questão que me traz aqui hoje: porque sou Maçom? Como sou Maçom? Para que é que isso serve? Como pode a Maçonaria contribuír para um mundo melhor, mais humanista, mais solidário, mais fraterno, mais equilibrado, enfim, será que pode? É óbvio que não vou dar resposta a estas inquietações, porque à medida que vou crescendo, são maiores as dúvidas do que as certezas, o que, provavelmente, tornará irrelevante para o futuro da humanidade esta minha intervenção. Gostaria, contudo, de partilhar convosco estas mesmas inquietações, se isso me for permitido. Afirmar hoje que sou Maçon, pode sugerir várias significações e não menos enquadramentos. Nenhum deles será, contudo, suficientemente explícito para designar porque sou Maçon. Há uma certa tendência para se caír neste tipo de falta de clareza quando não se sabe bem o que dizer. No entanto, eu lancei o meu bote à deriva, e tenciono colher-lhe a trajectória. Volto ao início: Porque sou Maçom? A primeira resposta pertinente que me surge é: porque sim! (Não chega, não é suficiente). Sou Maçon porque acredito, sigo, milito nas Constituições de Anderson! Sou Maçon, porque fui iniciado numa Loja Regular - Justa e Perfeita. (Aproximo-me da razão)... Sou Maçom, porque os meus Irmãos me reconhecem como tal... é isso: há um grupo de gente, que eu não escolhi - uns, já lá estavam; outros, chegaram depois - que me reconhecem no seu seio, me acompanham, me ajudam, contam comigo, conto com eles... Há um grupo de gente, que eu reconheço de modo diferenciado, e que me reconhece de modo diferenciado. De quê? De todo o resto que indiferenciadamente me não reconhece...
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Existe um grupo de pessoas, espalhado pelo universo, capaz de me acolher, de me reconhecer, de me identificar, apenas porque sou Maçom. Num acervo infinito de gente, há gente que me reconhece. Há gente que me responde a um telefonema, porque me apresento na qualidade de Maçom. Há gente que eu nunca teria conhecido, mas que conheço, apenas porque sou Maçon. Haverá, eventualmente, gente que, se eu não fosse Maçon, nunca me teria conhecido ou reconhecido, na imensa mole de gente que, não sendo Maçon, também é gente. No entanto, a Maçonaria não se esgota nisto, mas é também isto. Isto é, não é bem isto, mas é sobretudo isto. Não vos venho falar de rituais, de ritos, de liturgias, mas, sobretudo, acima de toda e qualquer suspeita, daquilo que, para além do acto iniciático que me tornou Maçom; de todos os outros actos iniciáticos que me permitiram progredir na via da Maçonaria; de tudo aquilo que, apesar de tudo, me obriga e abriga como Maçom; origina o facto de vos estar a dizer que sou Maçom. E se o sou, é por que me sinto como tal e, sobretudo, porque os meus Irmãos me reconhecem como tal. O que é que eu espero de um mundo que me reconhece como Maçom? O que é que o mundo espera de mim, enquanto Maçom? Que tenho eu para dar, ou para receber, por esse facto? Um abrigo? Um qualquer espaço recôndito de reconhecimento mútuo? Medalhas, condecorações, não, seguramente! Um olhar imaculado, virginal, sobre o acidente a que se chama quotidiano? Volto à origem: sou Maçom, porque os meus Irmãos me reconhecem como tal. Reconheço os meus Irmãos porque há um segredo que nos liga. O segredo, pelo simples facto de o ser, não é desvelável nem é desvendável!Este mundo está dominado por aqueles que, de entre nós, são mais actuantes: não necessariamente mais consequentes, não necessariamente mais honestos nos seus desígnios. Antes, até, pelo contrário. Este mundo que nós conhecemos ou pensamos conhecer, no âmago da nossa pueril inteligência, tem muito pouco a ver com a nossa / minha qualidade de Maçom. Existe-se para consumir e não para consumar. É triste, mas é verdade, aquilo que nos liga, na inércia do sistema de estarmos vivos, é a ânsia daquilo que nos separa. Juntamo-nos, corporativamente, para encontrar abrigos para o que nos separa. Afirmamos a diferença mais do que a semelhança. Esgaravatamos o inferno para provar que somos deuses. Que Olimpo este, tão cheio de cepticismo, de hipocrisia, de auto afirmação. Que céu este, tão cheio de núvens, de cavaleiros sem cavalo, de Quixotes sem moínhos... Sou Maçom porque sim, e disse!!!!Ou não disse, porque a segurança das minhas afirmações não acompanha a segurança dos meus actos. Ser Maçom, significa, se calhar, aquele imaginário que eu persigo, mas não alcanço. Ou pior, perseguir aquele imaginário que serve de escudo à minha impotência. Ou, se calhar, ser aquilo que o sendo, não o é... na perspectiva em que eu coloco a vontade, mas que a possibilidade recusa... Ser Maçom é, porventura, tentar sê-lo... ou dizer-se que se é... E a P2?, e o negocismo? E os lóbis inconfessáveis? E essas pequeninas e grandes ânsias de poderes... e, eventualmente, de poderes consumados? Porque ser Maçom, hoje, quando se pode ser tantas outras coisas? Por quê ser aquilo que se deseja ser, mas que se receia não ser suficientemente? Mas, ..., ser Maçom, ... , é também, e, sobretudo, escolher, no mundo labiríntico que nos enforma, uma forma de traçar caminhos, eventualmente tão labirínticos como aqueles que traçam a necessidade de os percorrer...
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Ser Maçom, é também ser lúcido, ou seja, admitir a Luz que nos ilumina quando nos consideramos sábios. Melhor, a Luz que, sem o sabermos, despeja em nós o calor que nos energiza. Não há nada de místico na Luz que nos ilumina. A leitura esotérica da nossa realidade reflecte apenas a lucidez pragmática da nossa realidade esotérica. A Liberdade viaja com o sonho, à velocidade da Luz. A Igualdade é o mito apócrifo de todo o imaginário humano. A Fraternidade reside no extremo do mutualismo, no fundo do túnel da esperança que mantém vivas as nossas paixões, os nossos sonhos, a puerilidade das nossas emoções mais sinceras...Encontar um Irmão, é recuperar uma peça perdida da nossa identidade, é recorrer ao regaço de uma mãe eterna, protectora, coadjuvante dos nossos receios, porque são também estes que nos ligam, é a dúvida que nos mantém unidos. A certeza é apanágio de quem não sabe. Se nascer é sofrer, renascer é reencontrar um curso para o sofrimento, ou seja, reciclar o sofrimento em felicidade. Eu, sou Maçom, porque sim! Admito, contudo, que os meus Irmãos me reconheçam como tal....Outra questão que se pode colocar, neste âmbito de reflexões, é: o que deve o Mundo à Maçonaria? O que deve a Maçonaria ao Mundo? É tradicional o sentimento do Maçom que, ao fim de três ou quatro anos de frequência da sua Loja, se interroga: o que é que ando aqui a fazer? Como e de que modo poderá ser a Maçonaria, ou o meu trabalho como Maçom, útil à Sociedade e ao Mundo? E criam-se guildas e associações e sociedades de pressão, e intenções que se transformam em negócios e negócios que se vêm a confundir com todos os outros negócios do mundo profano. Passem-se os juízos de valor... A vontade de exercer um qualquer protagonismo, consentâneo com os valores intrínsecos da Maçonaria, é uma vontade legítima. A operatividade da Maçonaria é notória em todas as formações, transformações e convusões do mundo ocidental, nos últimos séculos. A História da modernidade atesta-o. Mas a questão de fundo é esta: será mais urgente e consequente a acção no mundo exterior, profano, ou a acção, determinada e constante sobre cada um de nós, pedra obviamente constitutiva do edifício universal? Por outras palavras, admitindo que a cada Maçom assiste uma participação no mundo profano - familiar, profissional, etc. - não será mais profícuo o trabalho sobre a pedra bruta que cada um de nós constitui, na sua essência, do que essa urgência, por vezes histérica e mesmo histriónica de agir por agir, de mostrar serviço, quantas vezes mau, na sociedade civil? Esta, meus senhores, é uma das questões, porventura, mais polémicas e complexas que assistem a um Maçom. Tenho-me deparado e confrontado com ela, ao longo de mais de uma década, na minha qualidade de Maçom.
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É usual ouvir-se dizer, em Portugal, que foi a Maçonaria que instituíu o regime republicano no país. Será, contudo, a Maçonaria, uma instituição republicana? É claro que qualquer pessoa que conheça minimamente a história dos povos e das civilizações sabe responder que não. Muitos aristocratas e monárquicos notáveis preencheram e preenchem o painel das personalidades diferenciadas no quadro da Maçonaria portuguesa, e da Maçonaria Universal, como é natural. Claro que também é natural que, tratando-se o corpo maçónico de um acervo de homens livres e de bons costumes, no seu seio se tenham notabilizado alguns dos mais ilustres republicanos da história dos povos em geral, e da república portuguesa, em particular. O mesmo poderá ser referido, no respeitante à dicotomia laicismo-religiosidade, por exemplo. Será o laicismo um apanágio da Maçonaria? Estou convencido que não. É claro que a Maçonaria acredita numa sociedade laica, em que os valores da cidadania e do humanismo se sobreponham aos interesses e aos valores de uma qualquer comunidade religiosa. Mas, em toda a história da Maçonaria, mesmo na história contemporânia, encontramos cidadãos laicos e cidadãos membros do clero, cidadãos agnósticos e cidadãos de grande profundidade religiosa, a partilhar os trabalhos de Loja, unidos na mesma cadeia de união. Isto significa que os valores que nos ligam constituem elos de metal mais sólido e forte do que os que eventualmente nos separam. Os credos religiosos, as militâncias políticas, as idiossincrasias culturais que definem a individualidade de cada Maçom, subjazem aos elevados valores humanos e sociais que os religam nessa sólida cadeia de união universal.
E esta reflexão leva-nos a uma última questão: o facto de haver, dentro do mesmo país, diversas Obediências maçónicas, por vezes com adjectivações diferentes, significa que existem sectarismos ou rivalidades maçónicas? A História, neste aspecto, também é clara: a Maçonaria é uma Ordem Universal. Os homens, por vezes, apesar de partilharem os mesmos valores e objectivos, encontram-se conjunturalmente divididos. É humana a diferença de opinião e a afirmação da diferença. Contudo, no universo da Maçonaria, são mais fortes os valores de religação do que os de rotura. A Ordem Maçónica Universal tende para o reconhecimento da diferença e da especificidade cultural de cada Obediência. O mesmo se passou, na Idade Média, com as diversas Ordens Religiosas: a força religadora era mais forte do que a diferenciadora. Ouve-se, por vezes, falar, nos salões do mundo profano, como em certos meios maçónicos, de uma divisão entre uma Maçonaria dita regular e uma outra dita liberal, ou adogmática. A primeira, mais conservadora e enfeudada aos valores da religiosidade, ou da crença numa verdade revelada, liderada pela Inglaterra e pela anglofilia, e a segunda, mais progressista, eventualmente ateia e aberta à mudança, liderada pela França e pela francofilia. É certo que existem obediências que se reclamam da exclusividade dos princípios (landmarks) maçónicos, e outras, que procuram uma maior adequação às mutações sociais do nosso século. Aquilo que as separa é o que separa dois irmãos desavindos, mas que continuam a reconhecer-se como irmãos nos momentos chave da sua existência e convivência. É a perspectiva do universalismo maçónico que todos os Maçons perseguem e invocam, quando procedem, no encerramento dos seus trabalhos de Loja, à Cadeia de União.
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Volto a afirmar, no mais íntimo da minha convicção: a Maçonaria não é, não será, nem foi nunca regular, liberal, adogmática, operativa, especulativa, republicana, laica, monárquica, anarquista, socialista, mista, feminina, ecológica, verde ou libertária. Ela foi, e será sempre, Universal, atenta às mutações culturais, motor dos ideais vertentes sobre os valores que persegue, em cada momento histórico, em função de metas que vai atingindo e transpondo, fora de toda a estanqueidade, de todo o enquistamento que o mundo profano determina. Se hoje, o dogma é, ainda, e por não ter ainda sido ultrapassado: Liberdade, Igualdade, Fraternidade; Sabedoria, Força, Beleza; amanhã será aquilo que aqueles que viermos a iniciar vierem a perseguir, se conseguirmos que estes valores se tornem, entretanto, redundantes, no sentido da Perfeição do Homem e da Sociedade que o abriga e obriga. Ao julgarmos perseguir a essência dos valores iniciáticos da Nobre e Augusta Ordem Maçónica, que se fundam, entre outros, em conceitos como os de Fraternidade e de Tolerância, deixamos de parte os epítetos e as adjectivações sectárias, e fixamo-nos nos valores que nos ligam, aprofundando as razões do acervo simbólico iniciático que nos enforma, sob pena de deixarmos que a ânsia cega de modernidade contribua para o esvaziamento dos valores estruturais da Tradição. Liberdade, Igualdade, Fraternidade; Paz, Amor, Humanismo; etc., para além de sons agradáveis ao ouvido, são valores insofismáveis e inquestionáveis para um Maçon; serão, porventura, dogmas irrecusáveis. Penso que ainda é cedo para se falar de uma Maçonaria Quântica, ou mesmo Cosmogenética, que tome por premissas a dinâmica não-linear, a teoria dos fractais ou a da auto-similaridade. No equilíbrio entre a exacerbação da ordem e a exacerbação do caos, situa-se, penso, a Maçonaria Universal, ou seja, nesse sempre humano equilíbrio entre a arritmia do cérebro e o pulsar seguro do coração, nessa sempre necessária fecundação da emoção pela razão, e vice-versa, que reciprocamente se estimulam em espiritualidade e acção criativa. As diferenças de rito, a maior ou menor abertura às idiossincrasias do mundo profano, a mais rápida ou mais lenta adequação à mudança em termos de superestrutura, não constituirão entrave, mas antes incentivo ao apertar dos laços entre todos os homens livres e de bons costumes que, pela iniciação ritual e simbólica, se tornaram Maçons. E este objectivo dirige-se a toda a Humanidade.Regresso ao tema inicial desta comunicação e pergunto-me: porque sou Maçom? A resposta é inevitável: por todas estas razões e por outras, eventualmente inconfessáveis ou inexprimíveis, mas a razão primeira e, certamente a mais segura é PORQUE SIM!DisseMaio de 1998Luis Conceição, M.·. M.·. (R.·. L.·. Convergência, n.º 501, a Oriente de Lisboa, G.·. O.·.. L.·..)Prancha apresentada no Ciclo de Belas Artes em Madrid, na qualidade de Grande Chanceler do Grande Oriente Lusitano, Maio de 1998.